Por CBTM
O Qatar embarcou em uma busca sem precedente pela próxima geração de mega-astros do futebol. Os testes Sonhos do Futebol dão a jogadores aspirantes a chance de sucesso profissional -enquanto o Qatar, por sua vez, espera aumentar suas chances de se tornar um país sede da Copa do Mundo.
Ivan Sekazza veste a camisa número 10 e tem escrito Jesus em suas meias brancas com caneta marcador. Ele é um dos jogadores que estão jogando sob uma faixa gigante que diz Final da Sonhos do Futebol estendida no Aspire Dome, em Doha, Qatar.
Da lateral ele parece um jogador profissional baixinho -mas Ivan, que vem de Uganda, tem apenas 13 anos.
Ele vem de Campala, a capital de Uganda, onde seus quatro irmãos mais velhos o criaram depois que a mãe deles morreu há cinco anos. Ele quer se tornar profissional, para que um dia possa retribuir aos seus irmãos por tudo o que fizeram por ele.
O padre local rezou pelo futebolista aspirante antes dele partir para o Qatar. O padre disse para Ivan estudar as palavras do Senhor. Agora Ivan lê a Bíblia toda noite, então de novo às 4h da manhã, e novamente quando acorda. Ele lê o salmo 119:
--- E meditarei nos teus prodígios.
Poucos meses atrás, Ivan soube que homens de um país chamado Qatar estavam em Uganda à procura dos melhores jogadores de futebol do país. Eles organizaram torneios e à medida que as partidas se desenrolavam, Ivan acabou despontando como o melhor jogador entre os meninos do seu bairro, de sua cidade e até mesmo do seu país.
Ele tomou um avião pela primeira vez quando voou para Nairóbi para competir com os 50 melhores jogadores nascidos no mesmo ano, 1995, da Tanzânia, Quênia e Uganda. Agora ele é um dos últimos 25 dentre 544 mil garotos, todos nascidos em 1995, de nove países africanos, do Paraguai e do Vietnã.
Esta é a maior competição de talentos da história do futebol e dura quatro semanas. O Qatar está à procura do astro do futebol do amanhã, uma busca que envolve submeter crianças a testes rigorosos. Elas treinam diariamente e então, em seis partidas, elas jogam pelo seu futuro.
Os três melhores jogadores são convidados a permanecer em Doha, onde treinam para se tornarem jogadores profissionais. A sexta partida, a partida teste decisiva, é contra o time jovem do Milan. Ivan dá o pontapé inicial.
Qatar deve ser um paraíso para um menino de Campala. Não há favelas aqui, as ruas são pavimentadas, os apartamentos têm eletricidade e água corrente, ir ao médico e frequentar a escola não custa nada.
Mesmo quando o sol do verão está mais forte, a temperatura na maior arena do mundo permanece em confortáveis 18ºC.
O estádio Aspire Dome pode receber 8 mil torcedores e o estádio de atletismo pode receber 3 mil adicionais. A arena, que custou US$ 1 bilhão para ser construída, também contém pistas com barreiras, quadras de squash e uma arena de natação.
Quando os Jogos Asiáticos foram realizados em Doha há mais de dois anos, o emir do Qatar, o xeque Hamad Bin Khalifa al-Thani, investiu US$ 3 bilhões. Na cerimônia de abertura, seu próprio filho Mohammed acendeu a pira enquanto montava um cavalo preto.
O Qatar possui uma das maiores rendas per capita do mundo, uma distinção que manterá por um longo tempo. Os poços de gás natural do emirado no Golfo Pérsico continuarão produzindo por pelo menos mais 100 anos.
O fundo do governo com o qual a família real do Qatar administra os investimentos do país vale mais de US$ 50 bilhões, com dinheiro investido em bancos e empresas ao redor do mundo, incluindo a Airbus.
Enquanto outros governantes na Península Árabe constroem shopping centers ou colecionam arte, o emir do Qatar sonha em transformar seu país em uma grande força esportiva.
--- O esporte é a melhor forma de estender a mão a qualquer um ao redor do globo --- diz o emir. Seu filho, o príncipe Tamim, o chefe do Comitê Olímpico Nacional do Qatar, acredita que é mais importante ser membro do Comitê Olímpico Internacional do que da ONU.
Estádio laptop espetacular
Ambição e megalomania parecem ilimitados neste país, que tem menos da metade do tamanho da Bélgica e, além da capital, consiste de nada mais do que deserto. As instalações esportivas, algumas delas espetaculares, estão sendo construídas por toda parte no Qatar. Uma delas é apelidada de estádio laptop, porque dois terços dele ficam no subterrâneo e a arquibancada se projeta acima do solo como a tela de um computador laptop aberto.
Doha conta com um torneio de tênis do circuito da ATP desde 1993, atualmente com um prêmio em dinheiro de US$ 1 milhão. Boris Becker conquistou o primeiro torneio em 1993 e Andy Murray venceu neste ano. Os profissionais do golfe do European Tour jogam por um prêmio em dinheiro de US$ 2,5 milhões no Qatar Masters, que teve início em 1998. O torneio é realizado no inverno, quando as temperaturas ao ar livre são relativamente suportáveis, assim como em um evento de ciclismo profissional.
O Qatar até mesmo entrou na disputa para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. Mas devido ao seu clima inadequado, o país do deserto foi eliminado na primeira rodada, mas agora espera sediar a Copa do Mundo de futebol de 2018 ou 2022.
O Aspire Dome é tanto a peça central das ambições da família real quanto endereço de uma academia, onde 300 especialistas de mais de 60 países foram reunidos para transformar o talento atlético do Qatar - no atletismo, tênis de mesa e squash, iatismo e futebol- em atletas de classe mundial.
Há apenas um problema: há tantos qatarianos quanto moradores de uma cidade alemã de médio porte. Apenas um em sete dos 1,5 milhão de moradores do emirado possuem cidadania qatariana.
Os qatarianos já tentaram muitas coisas. No futebol, por exemplo, os melhores jovens talentos do país foram enviados para clubes na Europa há poucos anos, mas a experiência fracassou. Então os qatarianos importaram astros como Mario Basler e Stefan Effenberg, na esperança de elevar o nível do campeonato local, mas faltava dedicação aos caros profissionais europeus.
O Qatar também ofereceu a profissionais estrangeiros, como os brasileiros Aílton e Dedé, ambos jogadores de clubes alemães, € 1,5 milhão para que mudassem de cidadania, o que a Fifa, a federação internacional de futebol, posteriormente desaprovou.
A Sonhos do Futebol é um novo começo, uma tentativa de atrair alguns dos melhores jovens talentos do mundo para o Qatar. Foi uma idéia do ex-jogador profissional espanhol Josep Colomer.
Ele foi um assistente da seleção brasileira, que derrotou a Alemanha na Copa do Mundo de 2002, e trabalhou na Clairefontaine, a escola de futebol francesa, assim como nas categorias de base do Barcelona. Colomer é o homem que descobriu Lionel Messi quando tinha a mesma idade que Ivan Sekazza tem hoje.
Enorme esforço
Colomer diz que o futebol europeu é uma bolha, feita de dinheiro demais e histeria excessiva. Desde 2006, ele passa 250 dias por ano viajando pelos países em desenvolvimento para organizar a busca por talentos.
No ano passado, ele realizou peneiras em mais de 800 lugares, um esforço enorme que só é possível graças a 6 mil voluntários. Acredita-se que a tarefa de selecionar os 25 melhores entre meio milhão de jogadores tenha custado cerca de € 10 milhões.
Na África, as crianças viajavam de suas aldeias remotas para os locais das partidas um dia antes, passavam a noite à beira do gramado, ansiosas para não perderem sua oportunidade. Os moradores de uma ilha no Delta do Níger, no sul da Nigéria, até mesmo protegeram os olheiros dos sequestradores, uma ameaça comum na região, para não colocarem em risco as partidas.
Em Gana, homens armados ameaçaram atirar em Colomer. E em Camarões, um garoto particularmente talentoso desapareceu repentinamente no segundo dia da peneira. Ele morreu durante a noite.
O trabalho de olheiro se tornou uma missão para o espanhol, que baseou sua ideia no conceito do programa de talentos American Idol e sua versão alemã. O departamento de marketing do Aspire quis dar à final um tratamento semelhante quando foi transmitida por canal de esportes saudita.
Mas Colomer impediu o plano, porque já tinha percebido a dimensão existencial enquanto preparava a primeira edição da Sonhos do Futebol, em 2007.
--- Na Europa, as crianças jogam futebol por diversão. Na África, elas jogam por suas vidas.
Os qatarianos estão convencidos de que o conceito de Colomer permitirá que transformem sua seleção nacional em um dream team (time dos sonhos) do mundo do futebol. Eles adotaram uma abordagem semelhante quando concederam cidadania a atletas do atletismo como o queniano Stephen Cherono, que venceu dois mundiais pelo Qatar nos 3 mil metros com barreiras.
Mas quando se trata do futebol, é mais fácil dizer do que fazer, porque a Fifa mudou seus estatutos. Ivan Sekazza só poderá jogar pelo Qatar quando tiver 23 anos -se é que jogará. Até lá, as crianças do Terceiro Mundo desafiarão e encorajarão os talentos locais do Qatar. Os dirigentes esportivos esperam que as crianças da África mostrem aos seus jovens bem alimentados a importância da vontade e da determinação nos esportes.
O alemão Andreas Bleicher é um diretor esportivo do Aspire. Ex-diretor da Base Olímpica da Renânia, Bleicher também vê o projeto Sonhos do Futebol como um gesto humanitário, que pode ser usado para dar bolsas de estudo para as crianças mais talentosas dos países em desenvolvimento.
Ele diz que os organizadores não têm interesse comercial nas crianças. O Aspire não é um clube de futebol, o que significa que não possui direitos de transferência dos jogadores. Para Bleicher, a meta é transformar o Aspire na melhor academia esportiva do mundo.
--- Nós queremos ser os descobridores do próximo Messi ou Ronaldinho.
Toaletes modernos e passaportes
A mudança de ambiente é um desafio para as crianças. Para os vencedores do ano passado, foi difícil a adaptação à vida em um internato, assim como novas experiências como ficarem sozinhos em seus quartos. Alguns meninos nunca tinham visto um toalete moderno antes.
Na escola, eles aprendem o que é um passaporte, como funciona uma conta bancária e como ler uma passagem aérea. Alguns meninos decidiram não fazer uso de sua viagem gratuita para casa durante as férias escolares, porque temiam a expectativa de terem que levar presentes.
Mas eles jogam futebol como jovens deuses. Samuel, de Kumasi, Gana, é mais rápido do que qualquer um dos seus companheiros de futebol. Innocent, de Gboko, Nigéria, poderá ser o próximo Roberto Carlos. Solomon, outro menino nigeriano, é apelidado de Mestre porque controla o jogo como um diretor. E Ivan?
--- Muito rápido, aprende rápido e é canhoto. Não há muitos assim --- disse Colomer, o criador da Sonhos do Futebol, mas ainda tem muito o que evoluir tecnicamente.
Os meninos estão jogando com o time jovem do Milan pela segunda vez hoje. Antes da primeira partida, os jovens italianos -membros do mesmo clube de astros mundiais do futebol como Kaká e Ronaldinho- estavam autoconfiantes, quase arrogantes, apenas para perderem de 7 a 0 para os meninos dos países mais pobres do mundo. Stefanio Eranio, o treinador do Milan, ficou tão chocado quanto empolgado.
--- Eles são tecnicamente incríveis e fisicamente sensacionais. Meus meninos teriam que atirar neles para detê-los.
Mas os italianos estão determinados a não perder a segunda partida, a decisão para os 25 finalistas. Os meninos do Milan endurecem. O placar ainda é de 0 a 0 no intervalo. Ivan é substituído e no final o time do Aspire vence por 2 a 0. Ivan faz o melhor para não demonstrar sua decepção -sem lágrimas, sem raiva, com palavras tão calmas quanto as de um profissional.
Seu sonho do futebol no Qatar chegou ao fim, mas isso não significa voltar para Campala. Ele e a maioria dos outros que não conseguiram ficar entre os três melhores agora viverão no Senegal, onde o Aspire criou uma filial da academia a 30 quilômetros da capital, Dacar.
Lá, Ivan treinará para seu futuro como jogador profissional. Ele irá para a escola e aperfeiçoará sua técnica, aprenderá francês e o básico da vida. E lerá a Bíblia o máximo possível, especialmente o salmo 119: Eu te expus meus caminhos e me respondeste.